Amigo é coisa? | Artigo de Ney Arruda Filho

Milton Nascimento é o cara. Pra mim, pelo menos. Mas hoje vou ter que discordar dele, depois de ouvir pela enésima vez uma música: amigo não é coisa! E também não é pra se guardar, muito menos debaixo de sete chaves, nem do lado esquerdo do peito. Uma barbaridade dessas ele só pode ter ouvido mesmo na “América”, aquela superpotência que num passado recente estava se fechando dentro de um longo e alto muro. Afinal, dito pelos próprios americanos, a “América” não tem amigos, tem interesses. Lá amigo é coisa e quando a coisa não presta mais, eles descartam. Se for bem bom, o amigo, bem justinho nos interesses americanos, eles guardam só e só, para si, do lado de dentro da muralha ou debaixo de sete chaves mesmo. Vai que gasta, né?

Para um rapaz latino americano como eu, vindo do interior, isso faz muito sentido. É fácil entender que quem cantava chorou, ao ver o seu amigo partir. Esse mesmo aí, o que cantava, talvez tenha escutado algo de bossa nova na vida, pensando na felicidade, que é como uma gota de orvalho numa pétala de flor. Ele viu o amigo partindo e voou no pensamento: o amigo lembrará do seu canto, permeado de afeto?

E quem voou, ficou pensando numa mandinga pra lembrar do amigo e dos tantos que ele conhece e esquece de amar. Afinal, ele é tão bonzinho, esquecer vai contra os seus princípios. Até lembrou de cantar a amizade, essa coisa indefinível. Então tá, não vou discutir com o Milton. Esse meu amargor recente, que credito ao isolamento que nos foi imposto, tá estragando até a leitura que eu tinha das velhas canções. Deixa amigo ser coisa mesmo, deixa ele guardado do lado esquerdo do peito, se é assim que ele quer, que assim seja.

Mas nem o cara resistiu à armadilha. E se o tempo e a distância disserem “não”? E se o tal amigo esquecer a canção? O tempo, aquele que aprisiona, o mesmo que adormece as paixões, certamente fará estragos maiores no tal amigo americano. A distância, aquela coisa física, linear, diferente do tempo, talvez não faça tantos estragos nos tempos líquidos das redes sociais. Algumas chamadas de vídeo podem ser suficientes pra ouvir a voz que vem do coração. Afinal, não é só isso que importa?

Não, Milton, não mesmo! Retomo meu amargor recente, vezes dez na vinte e três, pra afirmar que importa o abraço, o encontro. Que seja o que vier. E também que venha o que vier, cloroquina, invermectina, creolina e a tão esperada vacina. Depois de tudo isso, amigo coisa ou amigo não coisa, vou resgatar o meu debaixo das tais sete chaves. Arranco ele do lado esquerdo do meu peito, para poder voltar a sorver daquela amizade das antigas, descompromissada e desinteressada. Qualquer dia será assim de novo. Qualquer dia, amigo, a gente volta a se encontrar.

Ney Arruda Filho

Artigo originalmente publicado no Jornal A Hora

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